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          vocabulário, da sua sensibilidade, das suas ideias, das suas visões. A distância entre o autor
          e o leitor, mesmo quando exemplarmente mediada pelo texto (Tatiana Faia vive incondici-
          onalmente nos seus poemas), é desmedida. Fico-me, pois, pelo acolhimento de sentidos
          que julgo corresponderem a qualquer coisa de parecido ao que a autora quis dizer. Apesar
          de, como refere George Steiner, o leitor manter com o texto uma relação de “recriação e de
          rivalidade”. Ou, ainda segundo Steiner, e devido ao declínio insofismável da leitura,
          devesse frequentar um curso, todos devêssemos fazê-lo, para ao menos me aproximar da
          complexidade de Um quarto em atenas. Sem isso, o meu pacto de inteligibilidade com a
          Tatiana será sempre frouxo, impertinente talvez, experimental na melhor das hipóteses.
          Mas uma coisa é certa: quando a lemos, Tatiana deixa-nos mais livres do que nos encon-
          trou, ela tem esse poder mágico de indicar, com sinais que devemos aprender a decifrar,
          opções de pensamento e de acção que não imaginávamos viver em nós. Se Bukowski tem
          uma infindável eloquência obscena, Baudelaire uma exultação selvagem, Eliot o desalen-
          to belo do fim do mundo e, para referir apenas alguns, Franco Alexandre sacode todo o
          ruído semântico para que assome um osso poético logicamente imaculado (embora com
          cintilações inquietantes), Tatiana mostra-nos que há outras pulsões, não necessariamente
          extravagantes, que imprimem pequenos, mas importantes, acertos à banalidade, o bastan-
          te para, como disse, ampliar a nossa experiência da liberdade (sem que precisemos de ser
          sacanas ou primariamente especistas para ser humanos). E tudo isto, presença densa, numa
          espécie de eixo horizontal, se cruza com a cartografia interna da autora. Dizem que para se
          aceder à condição de poeta é preciso criar uma linguagem própria, a poesia seria uma mane-
          ira quase privada, embora encantatória, de falar, do interior e do exterior, do além e do
          aquém, da vida e da morte, inventariando ainda o desastre identitário que nos lastra (por
          exemplo, a autora deslocou-se  – emigrou? – num planeta uno, mas ainda marcado pela
          obsolescência de pátrias geográficas e culturais, para que alguns possam brincar à geopolí-
          tica e as massas se embebedem com narcóticos nacionalistas). Tatiana afasta esta exigên-
          cia de privacidade, outros o fazem também, claro, mas neste caso sem aquela aparente
          rebeldia postiça de enfant terrible que declara permanentemente a sua especial naturalida-
          de, normalmente inacessível aos mortais mais comuns. Aliás, para ela, num registo de boa
          modéstia, “a personalidade é a consequência de um excesso / que encontra a sua própria
          harmonia”. (“Como Reconhecer o seu Escritor Feliz”) Esta harmonia conduzirá (penso
          eu) a uma calma resignação que nos coloca ao nível dos restantes seres vivos.
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